quinta-feira, 16 de junho de 2016

O Relicário de Pandora




Parte I

Apesar de atrasada, Pandora volta. Abre a porta apressada e sobe as escadas para pegar as luvas. Não podia sair nesse frio de mãos despidas. Lá fora nevava como há muito não acontecia. Eram flocos bem generosos. Ela não conseguia lembrar aonde colocara as benditas luvas! Como sempre, aliás... Procura em toda a parte. Mesmo incrédula, tenta sua sorte debaixo da cama e, ao invés das luvas, acha ali quietinhas, empoeiradas e até amareladas, lembranças enterradas a três palmos da cama em uma caixa. Pandora resolve abri-la. Como numa pintura em aquarela, surgem memórias. Muitas memórias. Em tons suaves e diluídas pelo tempo. Recordam-na de um tempo em que a felicidade era óbvia e tinha a doçura e a forma de um pirulito-coração. Sua memória ainda abriga beijos, cheiros, abraços, sorrisos, suspiros, juras... 
Recorda sobretudo aquela despedida. A última. A única. E que consegue doer até hoje. Lembra de si encaixada em seu colo olhando para ele. Pincelava seus dedos cuidadosamente por todo o rosto de Kosta. Os olhos dela registravam com precisão todas as minúcias dele. Sentia cada poro, cada curva, cada textura, cada imperfeição. Ficaram ali imóveis por uma eternidade de quase quinze minutos. Enxergavam-se. Amavam-se veladamente. Ela prosseguia sem cansar. Como se quisesse fazer dele um Dorian Gray diferente, com a alma aprisionada em sua retina. Poderia ficar ali até calejar a saudade na ponta de seus dedos. E que já doía. Os efeitos da separação certa já se antecipavam. 
Ele como quem sai de um transe, resolve perguntar qual paisagem ela tanto pincela. Sentindo a angústia esmagar seu peito, ela responde:
- Tenho urgência em memorizar teu rosto. Preciso sabê-lo de cor. Não quero um dia encontrá-lo entre as quinquilharias do esquecimento.
A dor e o medo transbordam num abraço...

Pandora fecha a caixa e sai sob a neve lá fora. Descobre as luvas no bolso interno do seu casaco. Enquanto as coloca, sente os flocos caírem sobre ela. Lembram-na promessas de um futuro sem passado...
                                                                                                          

domingo, 12 de junho de 2016

"Love is a verb" *



Não sei bem se é só coisa da nossa cabeça. Mas a gente faz coisas que até Zeus duvidaria. Pobre de nós, meros mortais. Criamos paixões, amores eternos e até dor de barriga. E quando a paixão atropela? Sei não. Paixão, amor, tudo reações químicas. Coisas do cérebro. Mas quando elas acontecem, sai da frente, do lado, de cima, de baixo. Massa cinzenta vira paleta de cores. Pinta amores em tons pastéis e paixões avassaladoras em rubi. Sensatez vira história. Lucidez? Nunca ouvi falar. Logo eu, tão sensata e comedida. Parece não haver exceção. Somos todos vítimas do acaso arrebatador. Venha ele na forma de paixão, de amor, de ódio, de dor de barriga... Ninguém escapa. A autossuficiência da moça, fica capenga. Sem pestanejar, liga bêbada de madrugada para ele para bater um papo (desculpa esta que, aliás, nunca convenceu ninguém, vão por mim); vai atrás dele em outro estado; resolve casar na Holanda ou em Las Vegas de all star. A sensatez do rapaz evapora. Ele, também, liga bêbado de madrugada para deixar transbordar um “eu te amo, sempre te amei e sempre vou te amar”; atravessa o país para ir atrás dela; pega-a pelas mãos e diz “preferes Las Vegas ou a Holanda? Não esquece de colocar teu all star mais bonito”. Há quem diga que ele pode também, por desespero, se embolar com a melhor amiga da moça. Um tiro fatal no próprio pé. Só Freud explicaria. E, acreditem ou não, é assim mesmo quando é uníssono. Não correspondido. E isso é triste. E belo! 
A razão freia muita coisa, mas não isso. Eu também sou assim. Maluca? Não, credo, cruz! Autossuficiente, comedida, sensata. Até a próxima paixão. Não me sou desleal, não adianta. Já fiz yôga, pilates, até kung-fu para tentar entender meu ying e meu yang. E concluí que ser maluca é saudável. Ser diferente é se harmonizar. Diria que sou emocionalmente criativa. Pronto. Isso é o que melhor me define. A loucura para mim é essencial, assim como a razão. Afinal, “há sempre alguma loucura no amor. Mas há um pouco de razão na loucura”. Não dá pra questionar Nietzsche. O que os outros pensam? Não sei. Não leio pensamentos! O que eu penso? Ainda tento entender. O que sinto? Sinto muito, demais, além da conta, com 10% por cento e couvert artístico.  Sem shows, nem plateia.                                             

*Fruto de uma parceria sazonal, repleta de conteúdo e boa música.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

One sight stand*



- Eu não ter olhos azuis, é um problema assim tão grande pra você?
- Me sinto enganado.
- Você gostou de transar com as minhas lentes, então?
- Não... eu gostei de você... mas teus olhos me encantaram.
- Muito bem...

Ela vai até o banheiro, pega o estojinho com as lentes azuis e volta ao quarto. Enquanto coloca o casaco, joga-o na cama ao lado dele.

- O que eu faço com isso?

Ela pega suas coisas e vai em direção à porta, enquanto ele a observa tentando entender o que está acontecendo. Antes de colocar seu olhos castanhos porta afora, ela diz:

- No estojo está a data de validade. Que seja eterno enquanto dure! 

Bate a porta e torce para que as lentes se encaixem perfeitamente na insegurança gris de Thomas.
                                                                                         

*Baseado em um diálogo surreal 

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Auto-reconciliação

Fonte: http://www.reflexosonline.com/

Ela entra em casa às pressas e transtornada. Vai direto ao quarto. Seu cômodo preferido até aquele dia. Está decidida a achar algo que lhe emprestasse coragem para deixá-la. Ela a enganara. Mais uma vez. Mais uma maldita vez! Ela abre gavetas, armários, revira suas roupas e quando chega em seus livros, congela. Olha fixamente para aquele livro que leram juntas, que as fez chorar, que as fez amar uma a outra. Diversas vezes. Com o rosto já inundado e exausta de sofrer, descobre uma página marcada com sua foto. Era a foto preferida de Fabrícia. Ela desembaça os olhos com as mãos trêmulas e lê: “No fundo, a superfície é super fácil de explorar. A covardia brinca de boiar na vida e a coragem opera em águas profundas”. Desespera-se. Mas nem o desespero fez com que maltratasse um livro. Ela o coloca cuidadosamente de volta à estante. E logo em seguida, implode. Na falta de um chão sob os pés, derrama-se sobre o sofá ainda com o cheiro da memória delas duas. Chora inconsolavelmente.

Fabrícia abre a porta cuidadosamente e entra. Ouvindo a respiração forte e soluçante de Rebeca, entende que para ela hoje, existir, é apenas resultado da tirania de sua condição biológica saudável. Aproxima-se e senta no chão ao lado do sofá. Respira fundo, levanta o olhar que vai de encontro aos olhos de Rebeca marcados pela dolorosa decepção rubra e diz:
- Você está certa. Eu errei. E muito. Prometi coisas sabendo que não iria cumprí-las. Fui uma fraude. Eu te amo, mas tenho falhas, que insisto por algum motivo em alimentar. Não estou te fazendo bem. Fique à vontade pra me deixar. Defenda-se. Eu não valho a decapitação da tua autoestima.

Rebeca ouve o estrondo da porta batendo com força e acorda assustada. Fabrícia invade o quarto histérica. Aos prantos, abraça Rebeca, agora sentada, e descontrolada pede:
- Me perdoa, beca! Eu não quero te peder. Prometo que nunca mais te magoou desta maneira estúpida. Me dê mais uma chance. Eu te amo, eu te amo! Por favor! Eu te imploro!

Rebeca olha fixamente para Fabrícia e percebe que elas, por teimosia ou egoísmo, ou ambos, haviam desfigurado irremediavelmente aquilo a que chamaram de amor. Sua sensibilidade estava triturada. Mas finalmente compreende. Seu amor-próprio enfim lhe estendera a mão. Olha para Fabrícia pela última vez, sorri levemente e sai. De uma vez e com delicadeza. Enquanto caminha, voltando lentamente a sentir o chão debaixo dos pés, percebe que o sol se põe as suas costas. Pára, vira-se para olhar o sol se pondo e, enfim, segue em frente.


                                                                                                                   

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Poema feito com os cheiros do Pará:*

Foto by Katy Karen dos Santos. All rights reserved

Abre a porta,
Chega-te a mim,
Talismã da sorte
Que o
Laço de amor
De santa Terezinha
Atraí a felicidade
E vence
Os sete segredos da Bahia
Porque tu
Choras por mim,
Amor!


*Poema da maninha poeta Cica Rohr, que, além de ser pai d'égua, é de rocha mermo!