terça-feira, 27 de setembro de 2016

Sorte de segunda


       "Palavras amáveis abrirão uma porta de ferro"
                                Provérbio turco


Naquela segunda-feira, ela vai para o trabalho obrigada pelo seu senso de responsabilidade. Fora descartada novamente por “ele”. Era uma estória complicada de idas e vindas. Mais idas do que vindas. Não entendia, porque se deixava levar de novo e de novo. Estava furiosa consigo mesma. “Que idiota!”, pensou, enquanto ajeitava os talheres na mesa. Trabalhava em um restaurante gourmet. Já no final do expediente, entrou na cozinha para pegar mais guardanapos. Estava irritada. Tinha que preparar as mesas para o dia seguinte. Enquanto procurava, lembrava daquela conversa surreal pelo chat. Ele morava em outra cidade. Pelo jeito, a distância não protege ninguém do egoísmo e do menosprezo alheio. Ela escuta um barulho e levanta o olhar. Vê alguém que nunca vira por ali. “Um colega novo?”, pergunta-se. Ela o admira fixamente e, ao mesmo tempo, tenta adivinhar de quem se trata. Ele veste um dólmã branco. “Só pode ser o novo chef”, supôs... e supôs. Supõe tanto, que acaba sendo descoberta pelos olhos castanhos dele. Seus olhares se atropelam. Ela, de tão sem graça, só consegue sorrir e foge para o salão. Ele, interessado em saber quem é a moça curiosa e de olhar lânguido, vai atrás dela sob a desculpa de conhecer os novos colegas. Apresenta-se. Ela, sem graça, balbucia o próprio nome:
- Carla.
- Carla..., ele repete. Ajeitando um dos guardanapos na mesa, ele diz: “não combina com você”.
- Como assim?
- Você deveria se chamar Bahar.
- Bahar?
- Sim. Bahar. Primavera. Sou filho de turcos imigrantes. De todo modo, prazer em te conhecer.


Vira-se e volta para cozinha, mas não entra antes de olhar para trás e sorrir. Ela retribui o sorriso, mas fica sem entender direito aquela cena. Nervosa, olha para os lados e volta a ajeitar as mesas. Abaixa o olhar e descobre um bilhete escondido em um dos guardanapos: “çok güzelsin!”. Trata de terminar as tarefas e segue rápido para casa. Mesmo cansada, liga o laptop e faz um chá. Era inverno e o frio exigia um chá. Depois de cinco intermináveis minutos, ela consegue finalmente ser salva pelo dicionário online. Mesmo com medo, traduz a frase. Olha fixamente a tela do laptop com um sorriso de ponta a ponta do seu rosto. “Você é linda!”. 
Ela tenta reproduzir a frase em turco. Sem sucesso, claro. Dá gargalhadas de si mesma e de seu turco lamentável. Neste exato momento, atenta para a letra da música que toca em sua playlist: “veja por esse ponto, há tantas pessoas especiais...”; e pensa naquela demonstração de afeto inesperada. Toma um gole de seu chá, lembra do rapaz do chat e canta como se proferisse uma sentença: “it’s over, good luck!”. 

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Dois pesos, duas insídias, uma palavra: Ego*


"Antes de embarcar em uma vingança, cave duas covas" 

Confúcio




A noite chuvosa parecia refletir seu estado de espírito. Andava descontroladamente de um lado ao outro do quarto já nervoso com a espera que aparentava, como toda espera, ser muito mais longa do que era de fato. Ela era sempre pontual, mas hoje se atrasara por mais de uma hora.
O céu estava avermelhado de tão cinza, tal qual a sua consciência inundada de culpa. O medo de ser abandonado misturava-se indissociavelmente à ansiedade para vomitar seu discurso mais do que ensaiado.
Olhava-se no espelho a fim de ocultar qualquer rastro de culpa, quando bateram à porta.
Ele, sabendo de quem se tratava, abriu sem cerimônia.
Ela, sem guarda-chuva ou indícios da chuva em sua roupa, entra ofegante e solta somente um “oi” pálido, com um olhar enviesado.
Ele diz: - Fica à vontade, vamos conversar. Senta-se a sua frente com pavor de que seu texto lhe fugisse da memória, inicia aquilo que mais estava para um duelo que para um diálogo:

- Bom, eu queria começar dizendo que...
Interrompendo-o como alguém que se atira na frente de um caminhão, diz: - Não tem jeito, acabou! Vamos nos poupar dos discursos prontos.
- Mas eu juro que ela não significou nada! Foi coisa de momento! Não foi premeditado!
- Não adianta, acabou!
- Não consigo entender, eu sei que errei, me dê uma chance, por favor! Não a conheci intransigente assim...
- Intransigente? Então com isso você quer me dizer que se fosse o contrário, você me perdoaria?
- Sim.
- Você tem absoluta certeza disso?
- Claro, eu amo você, mas não é capaz de me perdoar, não é?
- Sou.
- Então por que não acabamos com isso de uma vez?

Ele, já com o alívio lhe descendo pelo peito, tenta abraçá-la. Ela o impede e depois de um longo silêncio completa:
- Eu até posso perdoar, mas você não conseguirá. Só precisei atravessar o corredor pra vir até aqui. Dormi com o Marcos, mas se isso te traz algum alívio... ele não significou nada.
- Como você pôde? Ele é um irmão pra mim!
- Eu não pus uma arma na cabeça dele.
- ...
- E agora? Dois pesos, duas medidas?
- Saia da minha casa!

Já na rua, ela sentia a chuva molhar seus cabelos e o frio aumentar. Naquela noite, ela não se sentiu melhor como achou que se sentiria.

* Resultado de uma parceria para lá de produtiva com Jô Oliveira. Conto publicado também em Fragmentos de Jô


--> https://www.youtube.com/watch?v=JnuB_DjhC0M <--

sábado, 17 de setembro de 2016

A outra face (por Cilene Trindade)*



A reprodução proibída de René Margritte
Pensou de repente que teria sido melhor atolar os dois pés de uma só vez na Jaca e ter se entregado ao desejo fulminante de atacar aquele rosto vampiresco de Dorian Gray que ele tinha... e ter lhe roubado alguns anos de juventude ainda não vivida! 

Para que tanto pudor? Pensou! Estava mesmo há alguns dias de se mudar dali, portanto não havia com o que se preocupar... e afinal de contas, era uma daquelas raras ardências que fazem o corpo dilatar de vontades que não deveriam ser reprimidas por nenhuma consciência, ou deveriam? Bom, não sei, mas o fato é que decidiu reprimir, e se arrependeu! Mas sabia que isso aconteceria! E achou que foi a melhor decisão naquele momento. 

E agora pensa que não foi tão ruim assim, pois que às vezes - e só às vezes - a ficção é mais gostosa do que a vida! E pôs-se, então,  a eternizar o toque das mãos tão delicadas de menino apaixonado escorregando pelo seu corpo já há alguns anos amadurecido pelas estórias por aí vividas. Aquele contraste de anos se destacava na pele de ambos e formava uma combinação deliciosa de sabores, cores e suores que nem Freud explica! 

E foi pensando dessa forma que achou por bem eternizar em palavras a vontade de tocar aquela bela face, deixando-a tornar-se um segredo Dorian Gray guardado em algum espelho de suas tantas vidas fictícias... 


*Com o peito cheio de alegria, ofereço guarida ao texto da minha querida amiga, irmã poeta Cilene Trindade! Pois todos temos nossa pitada de Dorian Gray refletida no outro.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Pingos nos ai's*



Vera chega mais cedo ao local marcado. Um restaurante ajeitadinho no centro. A conversa tinha que acontecer em um local neutro, de tendenciosas bastavam suas emoções. Estava para lá de nervosa. Sentia um daqueles tremores que anunciam terremotos. Chegando, fica indecisa qual mesa escolher. Decide-se, então, por aquela do canto. Aconchegante, discreta e coerente. Afinal, por anos deixou aquele amor jogado nos cantos de sua vida. Ele...  Acabara de se casar. Pensa nisso e sente um nó de escoteiro na garganta. Recompõem-se e espera. Ele chega e a encontra de pronto. Para um segundo para respirar fundo. Junta toda a sua bravura e segue em direção a ela. Abraça-a forte e demoradamente. Sentam-se tête-à-tête. Olham-se fixamente enquanto o garçom traz o menu. Ele, abrindo mão de small talks, quebra aquele silêncio guardado em si por anos a fio e diz:

- Ainda te esperei por três anos.
- Por que isso agora? Você acabou de casar. Não está feliz?
- Sim, muito. Segui em frente. Eu precisava dizer isso a você. Contar que por um bom tempo ainda tive esperança. Acreditei em nós. De verdade.
- Eu perdi a minha quando você se acovardou. Eu estava decidida a ir embora com você!
- Mas eu não tinha condições...
- Conversa! Uma luta à dois é sempre menos árdua. Teríamos sobrevivido juntos.
...

- Assim como sobrevivemos separados. Agora, Inês é morta. Seguimos em frente. Parabéns pelo casamento.
- Você continua casada?
...

- Sim.
- Até na covardia somos parecidos.
- Pode ser. Preciso ir. Muitas felicidades!

Ela sai apressada do restaurante já sentindo o rosto umedecer. Pega rápido um táxi e, aos prantos, volta para casa. 
Odeia-se mais do que nunca pela fraqueza de se ter deixado acomodar por tanto tempo. “Seguimos em frente”, pensa. Ela nunca saíra do lugar. Arruma uma mala com suas poucas coisas e sai. Deixa para trás um bilhete: “você está livre. Ligue para ela”. Já no táxi, ela liga para ele. Chama, chama, chama... Ele atende: “alô?”. Ela desliga. Chorando, ordena ao taxista que pare. Ela desce, paga a corrida e caminha sem destino. Desemboca em uma praça qualquer, senta na mala e, sentindo as lágrimas caírem em cascata, dá-se conta de que nunca foi livre. Enquanto precisar de alguém, não será livre; não será amor. Optar, é libertador. E hoje, finalmente, ela escolhe ficar só.
                                                                                              
*Baseado em angústias reais.

============> https://www.youtube.com/watch?v=z1k-sOC1miQ<==================