quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Final Feliz*

Foto by Katy Karen Cordeiro. All rights reserved.

Ela olha o horizonte e demora a acreditar no que vê. Um mundo de possibilidades coloca-se a sua frente. Finalmente realiza o sonho de ir ao "Império do Meio”. Sempre quis ir longe, mas desta vez cogita a possibilidade de ter exagerado. Sente o vento bater em seu cabelo a muitos metros do chão. Abre os braços e lembra dele. É como se o vento tivesse sussurrado seu nome “Gabriel”. 
Lembra do início e do fim daquele amor. Lembra do primeiro beijo, que acontece em uma brincadeira boba com gosto de cevada em uma roda de amigos. Melhor nem mencionar detalhes. Recorda o primeiro encontro. Ele tão nervoso e ela desconfiada, como sempre. Lembra de sua vida a dois. Sim, viveram juntos por algum pouco tempo. Lembra deles dois dançando na sala de estar com as caixas de mudança servindo de testemunhas. Ele não curtia dançar, mas com ela, divertia-se à beça. Seu negócio mesmo, era cantar. Cantava para ela aquele blues triste e caricato no chuveiro “I’ve got the blues...”. Ele sabia que ela morreria de rir. Repetidamente. Lembra do sorriso sincero dele. Recorda as promessas de amor, das quais bem poucas foram cumpridas. Acontece. Pensou em casar com ele algumas vezes, mesmo tendo declinado o pedido feito pelo menos umas três vezes. Lembra de sua bondade, mas sobretudo de sua sinceridade. Eram as duas coisas que, continuamente, a conquistava. Apaixonou-se várias vezes por ele. Detestou-o muitas outras. Tentaram reanimar o relacionamento moribundo umas duas vezes, até que ele resolve tropeçar em sua sinceridade, quando diz: “não te amo mais”. Terminam. Era complicado, eles moravam juntos. Cada reaproximação era, para ela, mais uma migalha de esperança de que eles superariam mais essa. Não adiantava. O amor já estava despedaçado e “os remendos pegam mal”. Ela, então, resolve cuidar da própria vida. Candidata-se para trabalhar bem longe dali e consegue a vaga. Precisava ir embora. Sentia-se no olho do furacão. Pouco antes da partida dela, ele pede para reatar. Talvez por medo de perdê-la. Afinal, "toda a sensação de perda, vem da falsa sensação de posse", diria Luiz Gasparetto. E ele tem toda a razão. A euforia do reatamento durou somente o tempo da partida dela. Agora a distância era real. E a dele, como era de se esperar, era mais do que proporcional. E doía demais nela. Lembra daquela briga ao telefone. Naquele dia, ela vislumbra o limiar entre o amor e o ódio. Ela não queria odiá-lo. Amou-o demais para isso. Liga para ele e finalmente diz: “Não há mais o que fazer, acabou. Não estamos felizes. A infelicidade não nos cai bem”. Rompe as correntes, enfim. Sofre muito por algum tempo, até que não sofre mais. Tudo passa. 
Ali do outro lado do mundo, sentada na muralha, sente um nó na garganta. Nó, que desata no momento em que compreende que aquele fim na hora certa, tornara-se laço. Sente-se aliviada. E, sobretudo, livre. Lágrimas resignadas descem calmas pelo seu rosto. Ela lembra deles dois juntos uma última vez e, grata, sorri. Deseja que eles amem de novo e muito mais.
Levanta o olhar, enxuga o rosto e percebe que a caminhada ainda é bem longa. A muralha é enorme e, ela, determinada como é, faz questão de ir até o final.

*****

Chegando no hostel, manda um e-mail para ele:

“Finalmente conheci a muralha. Pense numa felicidade! 
Gostei muito da foto de vocês dois. Estás tão feliz! Mande um abraço para a Melanie. Ela parece ser muito gente boa.
Beijos!”


*Baseado em erros e acertos reais.






segunda-feira, 17 de outubro de 2016

"Vanitas vanitatum et omnia vanitas" (Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade)





“O mundo é como um espelho que devolve a cada pessoa o reflexo de seus próprios pensamentos. A maneira como você encara a vida é que faz toda diferença”

Luís Fernando Veríssimo


Encara-se finalmente no espelho. Enganara seus parceiros, mentira para amigos, via na desgraça alheia sempre a oportunidade de tirar um a mais. Para ela, os fins sempre justificariam os meios. Transformara suas oportunidades de ser feliz em prêmios de consolação. De um jeito quase fordista, usara o tempo precioso de sua juventude para se fraudar. Olha-se no espelho e vê em suas rugas um mosaico de mentiras e futilidades. “Ela é toda líquida", talvez justificasse Baumann. Sólida mesmo, só a tristeza, até então uma desconhecida, que finalmente lhe fizera uma visita, aliás, que caíra de uma vez sobre seus ombros. O peso da responsabilidade pelos seus atos já entrara traquilamente na casa das toneladas. Doeu. E como.

“Desta vez é diferente”, dizia para si mesma, enquanto continuava a mentir em progressão geométrica. Não queria perdê-lo, mas não conseguia compreender que já o havia descartado. Era o amor “verdadeiro” surgido de uma construção quase caricatural, de tão falsa, dela mesma. Ela era uma areia movediça e, ele, a sua próxima vítima. Era uma questão de tempo para que ela o afogasse em seu lamaçal de ilusões, no qual, ele, por sinal, já estava afundado até o pescoço.

“Queria que as coisas tivessem sido diferentes”, ela diz para ele naquele último encontro. Acreditava que ele poderia ser a pessoa que a salvaria de si mesma.

Soluça de tanto sofrimento e lembra daquele último duelo de nervos.

- Por que tanta mentira? – Ele pergunta sentindo o peito em chamas e completa:
- Eu te amei tanto.
- Não sei. Fiquei com medo de te perder. Acho que nunca aprendi a fazer diferente.

...

- Por favor acredite, eu te amo! Estou falando a verdade.
- Verdade... Está aí uma palavra que definitivamente não combina contigo. Esqueça que eu existo. Por favor, não me procure mais!

De súbito, o som do telefone a traz de volta à realidade.

- Alô?
- Alô. Oi Amélia! Sou eu, Bárbara. Vais pra festa do Rogério?
- Oi, querida, Claro! Achas que vou perder? Os amigos dele são um charme! Agora que estou de novo solteira, quero é aproveitar! O Jaime vem me buscar às dez.
- Maravilha! A gente se vê lá.

Desliga o telefone, se olha no espelho e, por fim, enxerga-se. Pensa: “és patética”. Olha para o relógio que já marca nove horas da noite. Toma um gole da Vodka que lhe fizera companhia até ali e com um removedor de maquiagem, limpa o rastro da tristeza deixado pelo desespero de há pouco.

Já pronta, olha-se mais uma vez no espelho e pensa “assim está bem melhor” e sai. No elevador lembra de suas palavras “queria que as coisas tivessem sido diferentes” e sabe que, no fundo, mentira mais uma vez. Não quis fazer diferente, por isso não fizera diferente. Para ela, a mentira sempre a protegeria de si mesma.

domingo, 2 de outubro de 2016

Dos diálogos previsíveis*


Sentados no jardim eles conversam e se divertem um com o outro como de costume. À frente deles, duas taças de vinho tinto, uma paixão que sempre compartilharam.
O amigo: por que você nunca disse uma palavra a respeito?
A amiga: Porque não fazia sentido.
O amigo: E agora faz?
A amiga: Menos ainda.
O amigo: E por que tocar no assunto agora?
A amiga: E por que não? Tens medo de mim ou de ti?
O amigo: Dos dois. Sempre fomos imbatíveis juntos.
A amiga: Por que você nunca tentou nada?
O amigo: Eu tentei. Você é que não percebeu.
A amiga, com uma elegância peculiar, respira fundo e oferecendo a ele um leve sorriso, responde calmamente: Sutileza tem limite.
O amigo: E você? Por que nunca foi franca?
A amiga: Não confunda franca com fácil. Eu sempre estava na mulher que querias ao teu lado, mas na hora de agir, o alvo era sempre outro. Ela sempre tinha que caber exatamente na sua insegurança.
O amigo: Você está me culpando?
A amiga: Pelo quê? Não há culpados e nem vestígios se não há crime.
O amigo: De fato... mas por que nunca aconteceu nada? Por que a amizade?
A amiga, fazendo um brinde solitário com o ar, responde: porque eu queria ficar na tua vida e não passar pela tua cama. Tenho que ir. Tenho uma reunião importante daqui a meia hora.
Os amigos (em coro): Fica bem e te cuida.
Sorriem e se olhando profundamente, enfim, reconhecem que o medo de perderem um ao outro fora maior que a coragem de se ganharem.

*Conto abrigado há algum tempo pela D. Amiga Jô Oliveira em fragmentosdejo.blogspot.de