quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

O relicário de Pandora – parte II. "Mais do mesmo"*

Foto by Nathalia Fuchs. All rights reserved.*


Ela pega a caixa e coloca-a ao seu lado no carro. Assim vivia há quase duas décadas. Conduzia seu destino com muita propriedade, quase sempre com aquelas lembranças de carona. Dirige-se ao seu lugar predileto na cidade. Pretendia acabar com aquela história de uma vez por todas. Pandora não conseguia parar de pensar em Kosta desde o dia, em que abriu de novo aquela caixa. Sentia-se angustiada e irritada ao mesmo tempo. Ainda havia muito espaço para Kosta em sua memória. Depois de tantos anos, ele ainda tinha acesso a ela através daquelas lembranças. Estava cansada de regurgitá-las de novo e de novo. Ela precisava dar um fim a isso. Detestava sentir-se vulnerável. Ainda pensava em alguém que nunca conseguira cumprir uma única promessa. Nem a de enviar um cartão postal. Promessas  feitas em nome de um amor que parecia nunca ter existido. Sentia-se emocionalmente esquizofrênica. Estava exausta. Chega ao destino, estaciona, pega a caixa do banco carona como se pegasse alguém qualquer pelo braço obrigando-o a sair do carro. Olha fixamente o portão de entrada. Espera passar por ele inteira ou pelo menos mais leve no caminho de volta. Vai até uma árvore no meio do parque. Ajoelha-se e chora. Era um lugar muito bonito, onde se refugiava sempre que se sentia triste. Ele transmitia conforto a ela. Principalmente naquela época do ano, em que a natureza despia-se devagarzinho, a paisagem emanava cores quentes e o chão ficava inundado de folhas secas. Embora ainda fosse outono, o frio já maltratava bastante. Afunda num aglomerado de folhas frias e fica ali por algum tempo, como se esperasse aquele frio anestesiar sua dor. Enfim resolve enterrar sua história com Kosta de uma vez por todas. Cava um buraco com as próprias mãos e enterra a caixa com as lembranças ainda vivas dentro dela. “Pronto”, pensa. Levanta, respira fundo e sentindo as mãos queimarem do frio, volta ao carro correndo como se fugisse de alguém. Entra no carro e não só chora. Sofre. Muito. Aliás, como poucas vezes em sua existência. Sente o corpo tremer e deseja que alguém chegue e a tire dali. Que a abraçe como um pai que abraça a filha que acabou de ter um pesadelo. Mas ninguém chega. E não é um pesadelo. Não há ninguém. Só ela mesma conseguiria amparar-se. Escolheu a vida adulta, a autonomia emocional longe da família e aceitou seu ônus. Depois de meia hora, finalmente sente-se mais calma. Liga o carro e dirige a esmo. 

******************* 

Alguns meses depois, já regenerada, chega em casa depois de um longo dia de trabalho, toma um banho quente e resolve ver um filme. Abre um vinho e não espera por sua amiga que já devia estar a caminho dali. Tenta, sem sucesso, apreciar o primeiro gole de seu vinho favorito, mas é interrompida pelo telefone. Atende e logo diz:

-  Oi Joana! Já sei, vai chegar atrasada de novo. Pra quê ter uma amiga tão boa, se não posso esperar por ela, não é mesmo?

Após um curto e estranho silêncio, uma voz grave se pronuncia:


-  Oi, Pandora. Sou eu, Kosta. Tô te ligando pra dizer que eu tô indo à Londres te ver.


Sentindo as mãos tremerem e as pernas bambas, a única reação que Pandora consegue ter, é desligar o telefone. Joana chega e, ao entrar, ainda testemunha a primeira lágrima cair nas maçãs rosadas de Pandora seguida de um desespero silencioso. Joana abraça Pandora e só consegue dizer:


-  Cuidado com ele. Ele nunca mudou. Sempre se mostrou mais do mesmo. O mesmo que te suga pro seu redemoinho de egoísmo há quase vinte anos.


Pandora fica ali abraçada com Joana e se vê lutando desesperadamente não só contra a esperança de que desta vez tudo será diferente. Mas sobretudo contra a imensa alegria que aquela notícia lhe provocara.




* Expressão emprestada de Jô Oliveira, autora do blog  http://fragmentosdejo.blogspot.de/


* Belíssima foto cedida por minha querida e talentosa amiga, fotógrafa Nathalia Fuchs. http://www.nathaliafuchs.com/

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Final Feliz*

Foto by Katy Karen Cordeiro. All rights reserved.

Ela olha o horizonte e demora a acreditar no que vê. Um mundo de possibilidades coloca-se a sua frente. Finalmente realiza o sonho de ir ao "Império do Meio”. Sempre quis ir longe, mas desta vez cogita a possibilidade de ter exagerado. Sente o vento bater em seu cabelo a muitos metros do chão. Abre os braços e lembra dele. É como se o vento tivesse sussurrado seu nome “Gabriel”. 
Lembra do início e do fim daquele amor. Lembra do primeiro beijo, que acontece em uma brincadeira boba com gosto de cevada em uma roda de amigos. Melhor nem mencionar detalhes. Recorda o primeiro encontro. Ele tão nervoso e ela desconfiada, como sempre. Lembra de sua vida a dois. Sim, viveram juntos por algum pouco tempo. Lembra deles dois dançando na sala de estar com as caixas de mudança servindo de testemunhas. Ele não curtia dançar, mas com ela, divertia-se à beça. Seu negócio mesmo, era cantar. Cantava para ela aquele blues triste e caricato no chuveiro “I’ve got the blues...”. Ele sabia que ela morreria de rir. Repetidamente. Lembra do sorriso sincero dele. Recorda as promessas de amor, das quais bem poucas foram cumpridas. Acontece. Pensou em casar com ele algumas vezes, mesmo tendo declinado o pedido feito pelo menos umas três vezes. Lembra de sua bondade, mas sobretudo de sua sinceridade. Eram as duas coisas que, continuamente, a conquistava. Apaixonou-se várias vezes por ele. Detestou-o muitas outras. Tentaram reanimar o relacionamento moribundo umas duas vezes, até que ele resolve tropeçar em sua sinceridade, quando diz: “não te amo mais”. Terminam. Era complicado, eles moravam juntos. Cada reaproximação era, para ela, mais uma migalha de esperança de que eles superariam mais essa. Não adiantava. O amor já estava despedaçado e “os remendos pegam mal”. Ela, então, resolve cuidar da própria vida. Candidata-se para trabalhar bem longe dali e consegue a vaga. Precisava ir embora. Sentia-se no olho do furacão. Pouco antes da partida dela, ele pede para reatar. Talvez por medo de perdê-la. Afinal, "toda a sensação de perda, vem da falsa sensação de posse", diria Luiz Gasparetto. E ele tem toda a razão. A euforia do reatamento durou somente o tempo da partida dela. Agora a distância era real. E a dele, como era de se esperar, era mais do que proporcional. E doía demais nela. Lembra daquela briga ao telefone. Naquele dia, ela vislumbra o limiar entre o amor e o ódio. Ela não queria odiá-lo. Amou-o demais para isso. Liga para ele e finalmente diz: “Não há mais o que fazer, acabou. Não estamos felizes. A infelicidade não nos cai bem”. Rompe as correntes, enfim. Sofre muito por algum tempo, até que não sofre mais. Tudo passa. 
Ali do outro lado do mundo, sentada na muralha, sente um nó na garganta. Nó, que desata no momento em que compreende que aquele fim na hora certa, tornara-se laço. Sente-se aliviada. E, sobretudo, livre. Lágrimas resignadas descem calmas pelo seu rosto. Ela lembra deles dois juntos uma última vez e, grata, sorri. Deseja que eles amem de novo e muito mais.
Levanta o olhar, enxuga o rosto e percebe que a caminhada ainda é bem longa. A muralha é enorme e, ela, determinada como é, faz questão de ir até o final.

*****

Chegando no hostel, manda um e-mail para ele:

“Finalmente conheci a muralha. Pense numa felicidade! 
Gostei muito da foto de vocês dois. Estás tão feliz! Mande um abraço para a Melanie. Ela parece ser muito gente boa.
Beijos!”


*Baseado em erros e acertos reais.






segunda-feira, 17 de outubro de 2016

"Vanitas vanitatum et omnia vanitas" (Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade)





“O mundo é como um espelho que devolve a cada pessoa o reflexo de seus próprios pensamentos. A maneira como você encara a vida é que faz toda diferença”

Luís Fernando Veríssimo


Encara-se finalmente no espelho. Enganara seus parceiros, mentira para amigos, via na desgraça alheia sempre a oportunidade de tirar um a mais. Para ela, os fins sempre justificariam os meios. Transformara suas oportunidades de ser feliz em prêmios de consolação. De um jeito quase fordista, usara o tempo precioso de sua juventude para se fraudar. Olha-se no espelho e vê em suas rugas um mosaico de mentiras e futilidades. “Ela é toda líquida", talvez justificasse Baumann. Sólida mesmo, só a tristeza, até então uma desconhecida, que finalmente lhe fizera uma visita, aliás, que caíra de uma vez sobre seus ombros. O peso da responsabilidade pelos seus atos já entrara traquilamente na casa das toneladas. Doeu. E como.

“Desta vez é diferente”, dizia para si mesma, enquanto continuava a mentir em progressão geométrica. Não queria perdê-lo, mas não conseguia compreender que já o havia descartado. Era o amor “verdadeiro” surgido de uma construção quase caricatural, de tão falsa, dela mesma. Ela era uma areia movediça e, ele, a sua próxima vítima. Era uma questão de tempo para que ela o afogasse em seu lamaçal de ilusões, no qual, ele, por sinal, já estava afundado até o pescoço.

“Queria que as coisas tivessem sido diferentes”, ela diz para ele naquele último encontro. Acreditava que ele poderia ser a pessoa que a salvaria de si mesma.

Soluça de tanto sofrimento e lembra daquele último duelo de nervos.

- Por que tanta mentira? – Ele pergunta sentindo o peito em chamas e completa:
- Eu te amei tanto.
- Não sei. Fiquei com medo de te perder. Acho que nunca aprendi a fazer diferente.

...

- Por favor acredite, eu te amo! Estou falando a verdade.
- Verdade... Está aí uma palavra que definitivamente não combina contigo. Esqueça que eu existo. Por favor, não me procure mais!

De súbito, o som do telefone a traz de volta à realidade.

- Alô?
- Alô. Oi Amélia! Sou eu, Bárbara. Vais pra festa do Rogério?
- Oi, querida, Claro! Achas que vou perder? Os amigos dele são um charme! Agora que estou de novo solteira, quero é aproveitar! O Jaime vem me buscar às dez.
- Maravilha! A gente se vê lá.

Desliga o telefone, se olha no espelho e, por fim, enxerga-se. Pensa: “és patética”. Olha para o relógio que já marca nove horas da noite. Toma um gole da Vodka que lhe fizera companhia até ali e com um removedor de maquiagem, limpa o rastro da tristeza deixado pelo desespero de há pouco.

Já pronta, olha-se mais uma vez no espelho e pensa “assim está bem melhor” e sai. No elevador lembra de suas palavras “queria que as coisas tivessem sido diferentes” e sabe que, no fundo, mentira mais uma vez. Não quis fazer diferente, por isso não fizera diferente. Para ela, a mentira sempre a protegeria de si mesma.

domingo, 2 de outubro de 2016

Dos diálogos previsíveis*


Sentados no jardim eles conversam e se divertem um com o outro como de costume. À frente deles, duas taças de vinho tinto, uma paixão que sempre compartilharam.
O amigo: por que você nunca disse uma palavra a respeito?
A amiga: Porque não fazia sentido.
O amigo: E agora faz?
A amiga: Menos ainda.
O amigo: E por que tocar no assunto agora?
A amiga: E por que não? Tens medo de mim ou de ti?
O amigo: Dos dois. Sempre fomos imbatíveis juntos.
A amiga: Por que você nunca tentou nada?
O amigo: Eu tentei. Você é que não percebeu.
A amiga, com uma elegância peculiar, respira fundo e oferecendo a ele um leve sorriso, responde calmamente: Sutileza tem limite.
O amigo: E você? Por que nunca foi franca?
A amiga: Não confunda franca com fácil. Eu sempre estava na mulher que querias ao teu lado, mas na hora de agir, o alvo era sempre outro. Ela sempre tinha que caber exatamente na sua insegurança.
O amigo: Você está me culpando?
A amiga: Pelo quê? Não há culpados e nem vestígios se não há crime.
O amigo: De fato... mas por que nunca aconteceu nada? Por que a amizade?
A amiga, fazendo um brinde solitário com o ar, responde: porque eu queria ficar na tua vida e não passar pela tua cama. Tenho que ir. Tenho uma reunião importante daqui a meia hora.
Os amigos (em coro): Fica bem e te cuida.
Sorriem e se olhando profundamente, enfim, reconhecem que o medo de perderem um ao outro fora maior que a coragem de se ganharem.

*Conto abrigado há algum tempo pela D. Amiga Jô Oliveira em fragmentosdejo.blogspot.de





terça-feira, 27 de setembro de 2016

Sorte de segunda


       "Palavras amáveis abrirão uma porta de ferro"
                                Provérbio turco


Naquela segunda-feira, ela vai para o trabalho obrigada pelo seu senso de responsabilidade. Fora descartada novamente por “ele”. Era uma estória complicada de idas e vindas. Mais idas do que vindas. Não entendia, porque se deixava levar de novo e de novo. Estava furiosa consigo mesma. “Que idiota!”, pensou, enquanto ajeitava os talheres na mesa. Trabalhava em um restaurante gourmet. Já no final do expediente, entrou na cozinha para pegar mais guardanapos. Estava irritada. Tinha que preparar as mesas para o dia seguinte. Enquanto procurava, lembrava daquela conversa surreal pelo chat. Ele morava em outra cidade. Pelo jeito, a distância não protege ninguém do egoísmo e do menosprezo alheio. Ela escuta um barulho e levanta o olhar. Vê alguém que nunca vira por ali. “Um colega novo?”, pergunta-se. Ela o admira fixamente e, ao mesmo tempo, tenta adivinhar de quem se trata. Ele veste um dólmã branco. “Só pode ser o novo chef”, supôs... e supôs. Supõe tanto, que acaba sendo descoberta pelos olhos castanhos dele. Seus olhares se atropelam. Ela, de tão sem graça, só consegue sorrir e foge para o salão. Ele, interessado em saber quem é a moça curiosa e de olhar lânguido, vai atrás dela sob a desculpa de conhecer os novos colegas. Apresenta-se. Ela, sem graça, balbucia o próprio nome:
- Carla.
- Carla..., ele repete. Ajeitando um dos guardanapos na mesa, ele diz: “não combina com você”.
- Como assim?
- Você deveria se chamar Bahar.
- Bahar?
- Sim. Bahar. Primavera. Sou filho de turcos imigrantes. De todo modo, prazer em te conhecer.


Vira-se e volta para cozinha, mas não entra antes de olhar para trás e sorrir. Ela retribui o sorriso, mas fica sem entender direito aquela cena. Nervosa, olha para os lados e volta a ajeitar as mesas. Abaixa o olhar e descobre um bilhete escondido em um dos guardanapos: “çok güzelsin!”. Trata de terminar as tarefas e segue rápido para casa. Mesmo cansada, liga o laptop e faz um chá. Era inverno e o frio exigia um chá. Depois de cinco intermináveis minutos, ela consegue finalmente ser salva pelo dicionário online. Mesmo com medo, traduz a frase. Olha fixamente a tela do laptop com um sorriso de ponta a ponta do seu rosto. “Você é linda!”. 
Ela tenta reproduzir a frase em turco. Sem sucesso, claro. Dá gargalhadas de si mesma e de seu turco lamentável. Neste exato momento, atenta para a letra da música que toca em sua playlist: “veja por esse ponto, há tantas pessoas especiais...”; e pensa naquela demonstração de afeto inesperada. Toma um gole de seu chá, lembra do rapaz do chat e canta como se proferisse uma sentença: “it’s over, good luck!”. 

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Dois pesos, duas insídias, uma palavra: Ego*


"Antes de embarcar em uma vingança, cave duas covas" 

Confúcio




A noite chuvosa parecia refletir seu estado de espírito. Andava descontroladamente de um lado ao outro do quarto já nervoso com a espera que aparentava, como toda espera, ser muito mais longa do que era de fato. Ela era sempre pontual, mas hoje se atrasara por mais de uma hora.
O céu estava avermelhado de tão cinza, tal qual a sua consciência inundada de culpa. O medo de ser abandonado misturava-se indissociavelmente à ansiedade para vomitar seu discurso mais do que ensaiado.
Olhava-se no espelho a fim de ocultar qualquer rastro de culpa, quando bateram à porta.
Ele, sabendo de quem se tratava, abriu sem cerimônia.
Ela, sem guarda-chuva ou indícios da chuva em sua roupa, entra ofegante e solta somente um “oi” pálido, com um olhar enviesado.
Ele diz: - Fica à vontade, vamos conversar. Senta-se a sua frente com pavor de que seu texto lhe fugisse da memória, inicia aquilo que mais estava para um duelo que para um diálogo:

- Bom, eu queria começar dizendo que...
Interrompendo-o como alguém que se atira na frente de um caminhão, diz: - Não tem jeito, acabou! Vamos nos poupar dos discursos prontos.
- Mas eu juro que ela não significou nada! Foi coisa de momento! Não foi premeditado!
- Não adianta, acabou!
- Não consigo entender, eu sei que errei, me dê uma chance, por favor! Não a conheci intransigente assim...
- Intransigente? Então com isso você quer me dizer que se fosse o contrário, você me perdoaria?
- Sim.
- Você tem absoluta certeza disso?
- Claro, eu amo você, mas não é capaz de me perdoar, não é?
- Sou.
- Então por que não acabamos com isso de uma vez?

Ele, já com o alívio lhe descendo pelo peito, tenta abraçá-la. Ela o impede e depois de um longo silêncio completa:
- Eu até posso perdoar, mas você não conseguirá. Só precisei atravessar o corredor pra vir até aqui. Dormi com o Marcos, mas se isso te traz algum alívio... ele não significou nada.
- Como você pôde? Ele é um irmão pra mim!
- Eu não pus uma arma na cabeça dele.
- ...
- E agora? Dois pesos, duas medidas?
- Saia da minha casa!

Já na rua, ela sentia a chuva molhar seus cabelos e o frio aumentar. Naquela noite, ela não se sentiu melhor como achou que se sentiria.

* Resultado de uma parceria para lá de produtiva com Jô Oliveira. Conto publicado também em Fragmentos de Jô


--> https://www.youtube.com/watch?v=JnuB_DjhC0M <--

sábado, 17 de setembro de 2016

A outra face (por Cilene Trindade)*



A reprodução proibída de René Margritte
Pensou de repente que teria sido melhor atolar os dois pés de uma só vez na Jaca e ter se entregado ao desejo fulminante de atacar aquele rosto vampiresco de Dorian Gray que ele tinha... e ter lhe roubado alguns anos de juventude ainda não vivida! 

Para que tanto pudor? Pensou! Estava mesmo há alguns dias de se mudar dali, portanto não havia com o que se preocupar... e afinal de contas, era uma daquelas raras ardências que fazem o corpo dilatar de vontades que não deveriam ser reprimidas por nenhuma consciência, ou deveriam? Bom, não sei, mas o fato é que decidiu reprimir, e se arrependeu! Mas sabia que isso aconteceria! E achou que foi a melhor decisão naquele momento. 

E agora pensa que não foi tão ruim assim, pois que às vezes - e só às vezes - a ficção é mais gostosa do que a vida! E pôs-se, então,  a eternizar o toque das mãos tão delicadas de menino apaixonado escorregando pelo seu corpo já há alguns anos amadurecido pelas estórias por aí vividas. Aquele contraste de anos se destacava na pele de ambos e formava uma combinação deliciosa de sabores, cores e suores que nem Freud explica! 

E foi pensando dessa forma que achou por bem eternizar em palavras a vontade de tocar aquela bela face, deixando-a tornar-se um segredo Dorian Gray guardado em algum espelho de suas tantas vidas fictícias... 


*Com o peito cheio de alegria, ofereço guarida ao texto da minha querida amiga, irmã poeta Cilene Trindade! Pois todos temos nossa pitada de Dorian Gray refletida no outro.