sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Dois pesos, duas insídias, uma palavra: Ego*


"Antes de embarcar em uma vingança, cave duas covas" 

Confúcio




A noite chuvosa parecia refletir seu estado de espírito. Andava descontroladamente de um lado ao outro do quarto já nervoso com a espera que aparentava, como toda espera, ser muito mais longa do que era de fato. Ela era sempre pontual, mas hoje se atrasara por mais de uma hora.
O céu estava avermelhado de tão cinza, tal qual a sua consciência inundada de culpa. O medo de ser abandonado misturava-se indissociavelmente à ansiedade para vomitar seu discurso mais do que ensaiado.
Olhava-se no espelho a fim de ocultar qualquer rastro de culpa, quando bateram à porta.
Ele, sabendo de quem se tratava, abriu sem cerimônia.
Ela, sem guarda-chuva ou indícios da chuva em sua roupa, entra ofegante e solta somente um “oi” pálido, com um olhar enviesado.
Ele diz: - Fica à vontade, vamos conversar. Senta-se a sua frente com pavor de que seu texto lhe fugisse da memória, inicia aquilo que mais estava para um duelo que para um diálogo:

- Bom, eu queria começar dizendo que...
Interrompendo-o como alguém que se atira na frente de um caminhão, diz: - Não tem jeito, acabou! Vamos nos poupar dos discursos prontos.
- Mas eu juro que ela não significou nada! Foi coisa de momento! Não foi premeditado!
- Não adianta, acabou!
- Não consigo entender, eu sei que errei, me dê uma chance, por favor! Não a conheci intransigente assim...
- Intransigente? Então com isso você quer me dizer que se fosse o contrário, você me perdoaria?
- Sim.
- Você tem absoluta certeza disso?
- Claro, eu amo você, mas não é capaz de me perdoar, não é?
- Sou.
- Então por que não acabamos com isso de uma vez?

Ele, já com o alívio lhe descendo pelo peito, tenta abraçá-la. Ela o impede e depois de um longo silêncio completa:
- Eu até posso perdoar, mas você não conseguirá. Só precisei atravessar o corredor pra vir até aqui. Dormi com o Marcos, mas se isso te traz algum alívio... ele não significou nada.
- Como você pôde? Ele é um irmão pra mim!
- Eu não pus uma arma na cabeça dele.
- ...
- E agora? Dois pesos, duas medidas?
- Saia da minha casa!

Já na rua, ela sentia a chuva molhar seus cabelos e o frio aumentar. Naquela noite, ela não se sentiu melhor como achou que se sentiria.

* Resultado de uma parceria para lá de produtiva com Jô Oliveira. Conto publicado também em Fragmentos de Jô


--> https://www.youtube.com/watch?v=JnuB_DjhC0M <--

3 comentários:

disse...

Égua! Quanto tempo faz que escrevemos esse texto? Muito. Tá na hora de escrevermos outro, dona amiga. Gostei de relembrar.

Unknown disse...

Parceria pra lá de prosa! ����

Palavra Inoportuna disse...

Intrigas gostosas!